Banalidades, aleatoriedades, inutilidades, letras de música que não viraram música e alguma poesia

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Senta no shopping e chupa

O trabalho é movido pelo capital que, por sua natureza intrínseca, estimula o consumo, porém muitas vezes um consumo desenfreado, ao invés de um consumo consciente. A utilização de conhecimentos da psicologia e de descobertas recentes das neurociências sobre o funcionamento do cérebro humano tem levado agências publicitárias e empresas a investirem cada vez mais no público infantil e juvenil como potenciais consumidores. A propaganda massiva e onipresente, além de fomentar um consumo vazio e degradante, deturpa, ao mesmo tempo, desde cedo, o valor do trabalho como mero meio para aquisição de bens muitas vezes fúteis e desnecessários. Há uma indústria que investe pesadamente para tornar-nos reféns de nossos próprios desejos. O avanço tecnológico torna obsoletos um celular, computador ou televisão em plenas condições de uso em alguns meses. Nunca se produziu e se consumiu tanto. Como conseqüência, nunca se trabalhou tanto. A dedicação total à empresa, cumprimento de metas impossíveis, o aprimoramento constante exigido pelo empregador, tudo reflete uma mentalidade voltada ao consumo que cria instabilidade constante no emprego. Trabalha-se para comprar, mas reclama-se da falta de tempo. Na verdade, o ato de compra torna-se, assim, um valor absoluto, retirando do trabalho a possibilidade de realização pessoal e transformação reais do mundo e da natureza para melhor. Um sintoma disso é que grandes templos do consumo, os shoppings centers, são opções de lazer das famílias nas grandes cidades. O que aconteceu com os zoológicos e o futebol nos terrenos baldios? Os leões e as araras dormem. A bola já não faz mais gol e não quebra mais vidros de vizinhos. Confunde-se lazer com consumo. E lá vamos nós. Faz-se, portanto, necessária uma reavaliação crítica do que entendemos atualmente como “trabalho” e “consumo”.
Trecho do artigo "Senta no shopping e chupa", de Daniel Punk, traduzido do original, publicado no New York Times, edição de hoje 24/11/12 (só que não)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

domingo, 14 de setembro de 2014

BALAS DE GOMA

dizem que deus me deu duas pernas
e o governo transporte público pago e de má qualidade
para eu ir lá

a chevrolet e a ford fabricaram vários carros
marcas de bicicletas e motos também fazem veículos especialmente
para eu ir lá

tenho um par de all star furados
que mesmo cansados me dizem
para eu ir lá

"quem tem boca vai a Roma"
a sabedoria popular também quer e me implora
para eu ir lá

tenho tudo isso
mas não vou

não vou porque não quero
não vou porque todos vão
não vou porque dizem que aqui
não é meu lugar
e sim lá

não vou porque quero mascar
a palavra solidão entre aspas
como balas de goma
e ver o gosto que elas têm

ir e saber o que há lá
a pé de carro de avião
eu haverei tu haverás
eles haverão

se eu for o aqui será o lá
e eu haverei de querer voltar
pois sabendo o que há lá
irei querer saber se o que aqui havia
ainda está

tenho uma mochila nova cheia de coisas desimportantes para ir
mas não vou

não vou porque não quero
e enquanto não vou
masco balas artificiais

na bala de goma verde
redescubro um sabor familiar
partículas de açúcar e de inferno
contidas na bala de goma
sabor esperar

em breve
numa rodoviária
perto de você



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Mobilidade urbana

Foram divulgados os poemas selecionados para o "Poemas no Ônibus e no Trem 2014" e o meu "Poema faminto" está entre eles.
Trata-se de um projeto bem legal desenvolvido já há algum tempo pela Coordenação do Livro e Literatura, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre. Quem já utilizou alguma vez na vida o transporte coletivo da Capital já deve ter se deparado com algum desses poemas expostos ali.
Não tenho muita certeza se posso publicar o poema aqui, pois há uma exigência de que ele seja inédito (não sei se vale somente antes da seleção ou também antes de ser efetivamente publicado).
O certo é que ele viajará bastante pelas ruas e linhas do Trensurb durante todo o ano de 2015, o que significa uma exposição bastante significativa para alguém acostumado com a meia dúzia de leitores deste blog. Também sairá uma coletânea com os poemas selecionados que será publicada em livro e será lançada durante a Feira do Livro deste ano.
Para quem protestava por melhorias no transporte público da capital, eis minha modesta contribuição.

http://coordenacaodolivro.blogspot.com.br/2014/08/poesias-selecionadas-pelo-concurso.html


segunda-feira, 9 de junho de 2014

FLIPERAMA

Às vezes dá um tilt na cabeça da gente. Não sei se vocês sabem mas tilt vem daquelas máquinas de fliperama. Pinball. Na época eu não sabia o nome. Agora eu sei. Se você chacoalha muito a máquina, dá tilt. Se não chacoalha, é quase certo que perde. Então você chacoalha. E eu tinha a medida certa. A minha favorita era aquela que eu não lembro o nome. Parece que tinha a ver com algum deus antigo. Shiva? Talvez. Sei lá. Na época eu não sabia. Agora também não. A memória esquece, dá tilt às vezes. Mas nesse caso não se pode comprar outra ficha e começar de novo. No fliperama, sim. Só sei que eu colocava a bolinha quase sempre onde queria. Por todas aquelas duas pontes e cancelas e passagens secretas que ninguém nunca imaginava que existiam. A ficha era 50 centavos. O mesmo preço do pastel. Eu nunca comia pastel. Havia os guris que comiam pastel e não jogavam. Eu jogava e não comia pastel. Eu sempre tinha ranho escorrendo pelo nariz e nenhum amigo. Então tinha que jogar e engolir o ranho ao mesmo tempo. Era difícil conviver com tanta solidão. Até hoje não entendo como deixavam uma criança de dez anos assim, tão só. Mas quando eu conseguia 50 centavos eu tinha minha máquina, suas luzes e barulhos eletrônicos e todos paravam e vinham me ver jogar. Daí que, inversamente, eu me sentia tipo game over. Pois todos só queriam comer o seu pastel e descobrir como jogar tão bem como eu. Um dia meu pai teve tempo e foi comigo no fliperama e até me pagou um pastel. Fiquei tão contente que, na primeira vez, dei tilt. Na segunda, joguei tão bem que ganhei um jogo extra. Daí meu pai quis jogar. Deixei. Coitado. Não teve jeito, deu tilt de primeira. Fiquei com pena dele. Ele sabia muitas coisas que eu não sabia. Como algemar e prender pessoas, por exemplo. Eu não sabia nada disso. Era só um moleque fedendo à vida e com ranho escorrendo pelo nariz. Mas, nisso, eu era melhor que ele. Eu e minha máquina. Era quase como ter um amigo de verdade. Pouco depois o fliperama fechou. Por um bom tempo eu não sei como que o tempo passou. Acho que fiquei simplesmente vagando por lá, gastando a sola já gasta dos meus tênis Bamba, com uma liberdade que eu não sabia usar. Sem pastel nem guisado. Apenas 50 centavos no bolso e nenhuma máquina para jogar. Como eu ia dizendo, às vezes dá um tilt na cabeça da gente, de tanto ser balançada para lá e para cá, e a gente sente como se não servisse para nada e escreve umas coisas bestas como esta. Sobre um vazio gigantesco como a fome. E uma saudade repentina e inútil de uma máquina de fliperama. Posso dar uma dica para vocês? Você pode cortar uma ficha no meio com um alicate e jogar duas vezes com o preço de uma ficha só. Às vezes dá certo, às vezes não dá. É uma questão de sorte. Quando dava certo, eu podia jogar, economizar 25 centavos e quase comer um pastel. Porque o pastel era 50 centavos. O mesmo preço da ficha. Mas eu nunca comia pastel.
    

terça-feira, 13 de maio de 2014

Habitam em meu quarto
baratas bêbadas de cerveja e vinho.
Elas por si não beberiam
mas como eu bebo
à noite, enquanto durmo,
elas entram nas garrafas
e só saem, tontas e loucas,
revolucionárias,
de manhã,
cedinho.


terça-feira, 29 de abril de 2014

Sonhei, e com uma nitidez impressionante, como há muito tempo não sonhava, que eu era uma criança vivendo num vilarejo pobre em alguma parte da África. Havia um riacho que cortava nosso vilarejo. Não havia nenhum adulto no meu sonho. Todas as crianças brincavam à beira do riacho e eram felizes. Inclusive eu. Daí, acordei...


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Autoajuda

nunca critique alguém
que venceu na vida
por perseverar
vá e faça melhor
vença
sem nem ao menos
tentar



segunda-feira, 31 de março de 2014

R$ vida

qualquer beijo
é um beijo qualquer
se o desejo é industrializado

qualquer amor 
é uma promoção de supermercado
se pode ser comprado

todo medo
já é tarde
se a coragem é cinematografada

qualquer vida
é uma vida de merda cifra da morte
se tudo é lucro ou pecado

se não existe
desejo no beijo
amor de verdade
medo na coragem
e um pouco de sorte



sábado, 15 de março de 2014

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Carne vai, carne vem

Neste Carnaval, como sempre e já, não dançarei na boquinha da garrafa. Ao contrário, farei a garrafa dançar na minha boca.
Serei facilmente identificável como o cara fantasiado de Osama Bin Laden pilotando um teco-teco de isopor (a originalidade nunca foi meu forte, digamos).



sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sobre um cão

Gostava da carne macia
mas se contentava com a dura
dormia na casinha
mas queria as ruas


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Despedidas [ou Variações sobre a mesma merda]

1. 
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, descobriu o fórmula da invisibilidade?
- Não, ganhei na loteria!
2.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, não me ama mais?
- Comprei uma boneca inflável.
3.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, não gosta mais do nosso planeta Terra?
- Adoro! Tanto gosto de terra que decidi contratar imediatamente os serviços de um coveiro particular.
4.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, eu te amo tanto!
- É que comprei um Playstation 4 e resolvi pedir aposentadoria antecipada.
5.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, decidiu virar astronauta?
- Não, mas vou cavar um buraco negro na terra e hibernar como um urso por uns dez anos. 
6.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, decidiu virar padre?
- Não, mas acho que realmente Deus me chama. E um anjo me disse num sonho que posso encontrá-Lo bem ali, no fundo daquele precipício.
7.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, tá pedindo o divórcio?
- Não, mas vou pra China trabalhar como camponês. Sempre foi meu sonho de infância. E o cigarro é mais barato lá. E ninguém vai me encher para parar de fumar. E se encherem, bom, não vou entender nada. 
8.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, tá ficando louco?
- Não, mas decidi seriamente passar umas férias definitivas no hospício.
9.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, vai lutar com o Anderson Silva?
- Não, mas algo me diz que esta carteirinha de fã número um do Clube Osama Bin Laden ainda vai me causar problemas.
10.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Ah, vê se cresce, meu bem. Não seja tão infantil.
- Beleza. Vou passar uma temporada permanente me divertindo às ganhas com o Peter Pan e a Sininho na Terra do Nunca.
11.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- E quem vai pagar os 100 mil de juros no cartão de crédito?
- Eu que não. E gostaria de lhe informar que acabei de aceitar uma oferta de emprego para trabalhar no crime organizado, mais precisamente assalto a banco. E esses sangue que você tá vendo na minha mão é daquele viado do gerente do Bradesco que não quis parcelar nossa dívida.
12.
- Você nunca mais vai me ver na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, agora que as coisas estão dando certo. Temos nosso apartamento com vista pro mar, o Camaro Amarelo e o seu emprego de administrador naquela empreiteira.
- Você não lê os jornais? Acho que tu não tá entendo. Pode ir te despedindo do apartamento, do Camaro e até dessa calcinha bordada com fios de ouro. Não me chame mais de meu bem. Meu nome agora é Fiódor Mikhailovich Dostoiévski. Olha aqui o passaporte. Se eu não for em cana, é mais provável que me encontre na Praça Vermelha, de chinelo, calção e camiseta, lendo Crime e Castigo e tomando vodca barata. Bye, Bye, babe.
13.
- Você nunca mais vai me na porra desta vida!
- Por quê, meu bem, mais uma vez vai tentar se matar?
- Não, benzinho, agora quem eu vou tentar matar vai ser você! Au revoir!