Banalidades, aleatoriedades, inutilidades, letras de música que não viraram música e alguma poesia

segunda-feira, 9 de junho de 2014

FLIPERAMA

Às vezes dá um tilt na cabeça da gente. Não sei se vocês sabem mas tilt vem daquelas máquinas de fliperama. Pinball. Na época eu não sabia o nome. Agora eu sei. Se você chacoalha muito a máquina, dá tilt. Se não chacoalha, é quase certo que perde. Então você chacoalha. E eu tinha a medida certa. A minha favorita era aquela que eu não lembro o nome. Parece que tinha a ver com algum deus antigo. Shiva? Talvez. Sei lá. Na época eu não sabia. Agora também não. A memória esquece, dá tilt às vezes. Mas nesse caso não se pode comprar outra ficha e começar de novo. No fliperama, sim. Só sei que eu colocava a bolinha quase sempre onde queria. Por todas aquelas duas pontes e cancelas e passagens secretas que ninguém nunca imaginava que existiam. A ficha era 50 centavos. O mesmo preço do pastel. Eu nunca comia pastel. Havia os guris que comiam pastel e não jogavam. Eu jogava e não comia pastel. Eu sempre tinha ranho escorrendo pelo nariz e nenhum amigo. Então tinha que jogar e engolir o ranho ao mesmo tempo. Era difícil conviver com tanta solidão. Até hoje não entendo como deixavam uma criança de dez anos assim, tão só. Mas quando eu conseguia 50 centavos eu tinha minha máquina, suas luzes e barulhos eletrônicos e todos paravam e vinham me ver jogar. Daí que, inversamente, eu me sentia tipo game over. Pois todos só queriam comer o seu pastel e descobrir como jogar tão bem como eu. Um dia meu pai teve tempo e foi comigo no fliperama e até me pagou um pastel. Fiquei tão contente que, na primeira vez, dei tilt. Na segunda, joguei tão bem que ganhei um jogo extra. Daí meu pai quis jogar. Deixei. Coitado. Não teve jeito, deu tilt de primeira. Fiquei com pena dele. Ele sabia muitas coisas que eu não sabia. Como algemar e prender pessoas, por exemplo. Eu não sabia nada disso. Era só um moleque fedendo à vida e com ranho escorrendo pelo nariz. Mas, nisso, eu era melhor que ele. Eu e minha máquina. Era quase como ter um amigo de verdade. Pouco depois o fliperama fechou. Por um bom tempo eu não sei como que o tempo passou. Acho que fiquei simplesmente vagando por lá, gastando a sola já gasta dos meus tênis Bamba, com uma liberdade que eu não sabia usar. Sem pastel nem guisado. Apenas 50 centavos no bolso e nenhuma máquina para jogar. Como eu ia dizendo, às vezes dá um tilt na cabeça da gente, de tanto ser balançada para lá e para cá, e a gente sente como se não servisse para nada e escreve umas coisas bestas como esta. Sobre um vazio gigantesco como a fome. E uma saudade repentina e inútil de uma máquina de fliperama. Posso dar uma dica para vocês? Você pode cortar uma ficha no meio com um alicate e jogar duas vezes com o preço de uma ficha só. Às vezes dá certo, às vezes não dá. É uma questão de sorte. Quando dava certo, eu podia jogar, economizar 25 centavos e quase comer um pastel. Porque o pastel era 50 centavos. O mesmo preço da ficha. Mas eu nunca comia pastel.
    

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